terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Cólera - Parte V ou A Esposa

Hoje, na estação de trem, vi um homem sentado que lia um livro muito compenetrado. Tinhas as feições tranquilas e belas. Mas aí passou uma mulher de vermelho, e a estação parou. Era como se o tempo tivesse parado na hora que ela passava. Todos pararam para encará-la, os homens boquiabertos e as mulheres abismadas. Nunca vi mulher tão bonita na minha vida. Quando olhei novamente para o homem, ele estava realmente pasmo com a mulher. Queria eu que alguém olhasse para mim daquele jeito...


Estava num café. Sentado com seu livro. Era o homem da estação. Mas já não era o mesmo livro. Ajeitei o cabelo e as roupas, respirei fundo e segui em sua direção. Sentei-me na cadeira a sua frente. Ele não me reparou. Seu livro deve ser realmente muito interessante. Tentei chamar sua atenção limpando a garganta algumas vezes, mas nada. Eis que chega o garçom com seu café:
- Aqui está senhor.
- Obrigado, e ele sem desgrudar um segundo os olhos de seu livro.
O garçom fica em pé por alguns segundos ao seu lado e me encara.
- Você está com ele?, murmura.
- Não, acabei de chegar. Nem o conheço..., respondo também murmurando.
E a conversa continua:
- Então o que está fazendo aqui?
- Queria ver se ele olhava para mim, se é boa pessoa, se vamos nos dar bem, se poderíamos ir em alguns encontros, não sei!
- Ah sim... Então por que não fala com ele? Puxa um assunto?
- Bom, estava esperando para ver se ele desgrudava os olhos desse livro antes, oras!
- Claro, claro.
Ele então olha para o homem e depois para mim. Faz isso umas duas vezes e depois cutuca o homem e sai de fininho. O homem pula:
- O que foi?!, e então repara que estou sentada na sua frente com os maiores olhos do mundo encarando o lugar vazio aonde o garçom estava.
- Quem é você?, me pergunta.
- Ahn? O quê? Ah! Me desculpe... Eu estava conversando com o garçom e ele simplesmente te cutucou e saiu correndo.
- Então foi o garçom?
- Sim, foi.
- O que estavam conversando?
- Ele perguntou se eu estava contigo.
- E o que você disse?
- Que não, oras. Pois não estou.
- Então o que exatamente você está fazendo aqui?
E agora? O que eu respondia? Não esperava por isso... Não esperava que a conversa tomasse esse rumo.
- Bom..., eu não sabia o que responder!
- Bom o quê? Meu café? Meu café está ótimo!, respondeu com ironia.
Ele é bom mesmo.
- Então...?
Eu tenho que me safar dessa.
- Eu o vi outro dia na estação de trem e você lia outro livro. Estava reparando... Você lê muito rápido. Aquele livro não era nem um pouco pequeno e você não tinha passado da metade.
Quase... Queria saber o que ele estava pensando neste momento.
- Ah, sim... Claro., o peguei desprevenido, ele não esperava que eu dissesse isso. - Eu adoro ler. Não adoro, amo mesmo. Não tem prazer maior para mim nessa vida do que um bom livro. E ainda mais com um trabalho estressante e totalmente não interessante, eu preciso das minhas distrações. Você também gosta de ler?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Não sei ler.
- Você não sabe ler?
- Não...
- Nossa, nunca havia conhecido alguém que não soubesse ler.
- Aparentemente você não conhece muitas mulheres.
- É verdade.
É a minha deixa.
- Mas às vezes eu poderia achar alguém para me ensinar.
- Olha, não seria má ideia!, diz tomando um gole de seu café e dando uma olhadela em seu livro. - Eu tenho um amigo que é excelente com pessoas. Ele dá aula para adultos analfabetos.
- A... o quê?
- Analfabetos. Pessoas que não sabem ler ou escrever. Eu poderia falar com ele ver se ele poderia...
- Não!, gritei sem querer.
- Desculpe., ele ficou assustado.
- Não não, eu que peço desculpas.
- Mas você estaria interessada?
- Você não conheceria uma outra pessoa? Talvez uma coisa mais individual, mais pessoal?, Ele estava prestando atenção no seu livro.
- Eu não conheço muita gente, mas posso ver se meu amigo...
- Você! Eu gostaria que você me desse aula!, não é possível que ele não tinha entendido.
Ele olha para mim um tanto quanto confundido. Não disse nada.
- Estou flertando com você besta!
- Ah sim... Eu não sou muito bom para essas coisas, me desculpe., ele estava encabulado.
- Tudo bem. Mas e então, topa?
- O quê?
- Hahahaha sair comigo! Lerdo.
- Ah, claro! Hehe, ele ri desengonçado.
- Aonde gostaria de ir?
- Também não conheço muitos lugares. Eu saio do trabalho e venho para este café ou então para alguma livraria escolher um novo livro para ler e depois vou para casa.
- Então nos encontramos aqui, tudo bem?
- Tudo. Amanhã?
- Pode ser.
- Até.
- Até.


De volta à estação aonde o vi pela primeira vez. Ele estava sentado no mesmo lugar e lia um romance, como da primeira vez. Chego e lhe beijo os lábios. Assim ele me repara!
- Você demorou!
- Desculpe, estava me arrumando. Afinal, hoje não é qualquer dia!
- Tudo bem, tudo bem.
E nos beijamos novamente.
Logo antes de entrarmos no trem reparo numa mulher. Grávida. Já estava lá para os oito meses de gravidez, sua barriga estava enorme. Seu rosto me é tão familiar...
Acho que não tinha como estarmos mais felizes. Somos tão amigos, fazemos tudo juntos e, de noite, somos também amantes. E nos amamos como o calor do sol.


Ando acordando de noite. E quando reparo, ele não está do meu lado. A cama está fria. Pé ante pé vou até a sala, sem ele me reparar. Ele está na janela. Fuma. Passa a mão na cabeça. Acho que tem insônia. Não sei o que posso fazer para ajudá-lo, ele anda muito distante esses dias...


Não sei vou aguentar isso por muito mais tempo. Meses. Meses! Ele não fala comigo e sei que não está bem. E como poderei eu contá-lo o que se passa comigo? Nem ler ele consegue mais... Só trabalho, cigarro e café. Desse jeito vai ter um ataque do coração. Não suportaria ver isso. Um de nós irá antes. Tem que ser assim. Eu sairia por aquela porta agora. Mas isso o arrasaria demais. Talvez esse seja o melhor jeito... Alguém sempre tem que sofrer. Fico muito triste que tenha que ser ele.


Essa coisa de ficar doente não me faz nada bem. Ficar deitada o dia todo, tossindo sangue pra todo canto e tomando o tempo dele. Agora ele fuma como nunca. Está muito mal. Até seu emprego largou. E eu vou de mal a pior. Minha maior felicidade será sua pior tristeza. Eu só quero que esse sofrimento acabe.


- Eu... eu não vou aguentar muito mais., digo quase sem conseguir.
- Por favor, não me deixe!, ele chora.
- Vai ficar tudo bem, eu acredito em você. Você vai achar outra pessoa e vai ser feliz., eu pensava na mulher de vermelho que o atormentava por tantas noites sem sono.
- Eu não quero outra pessoa. Como pode dizer isso? Nunca vou te esquecer.
- Não peço que me esqueça, peço que siga em frente. Não pare sua vida por minha causa, isso seria a pior coisa que poderia fazer em minha memória. Quero que volte a ler, volte ao café, saia de casa, mas principalmente, volte a ler. Você era outra pessoa com seus livros, era alguém completamente desligado do mundo mas ao mesmo tempo completamente apaixonado por ele. Não o deixe guardado, foi por aquele homem que me apaixonei só de ver. Você foi tão importante para mim que aposto que nem sabe! Me ensinou tanta coisa, me mostrou um mudo que vale a pena acreditar. Me ensinou a ler! Quando eu imaginaria que alguém seria capaz de conhecer outros mundos descritos num papel? Você me tornou a mulher mais feliz do mundo e foi o homem da minha vida. Mas da sua, eu sou apenas uma parte, um capítulo.
Ele agora chorava mais do que nunca. Pediu perdão por todas as noites que me largou na cama sozinha, por todas as noite que me acordou por conta de suas insônias. Como se eu fosse me importar com isso agora!
- Eu te amo.

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